18.8.09

O ASSASSINATO DO INIMIGO


O assassinato do inimigo

O cheiro podre do inimigo encontrou minhas narinas naquela manha cinzenta de uma terça-feira agustina. Inicialmente pensei se tratar de uma lata de lixo virada pelo cão noturno e vagabundo. No entanto o fedor aumentava a cada passo dado em direção a porta. Verifiquei a sola dos sapatos e nada. Lembrei então que os porcos capitalistas matavam frangos num frigorífico próximo e vez ou outra o vento trazia o fedor da fervura das aves que depois seriam banqueteadas em tom saboroso por medíocres burgueses. Mas o cheiro era ainda pior. Eu tivera um sono conturbado naquela noite: matei meu grande inimigo. Calafrios gelaram minhas vértebras ao cogitar a mera hipótese do sonho ter sido realizado. Haveria um cadáver fétido, morto, estrangulado, estraçalhado, rodeado de corvos no meu quintal? Isso seria péssimo, estragaria a linda imagem das poucas flores cultivadas na soleira.
Paralisado por alguns segundos, tomei coragem. Era estranho porque nunca havia sentido tanta coragem, tanta liberdade e paz de espírito. E a idéia de ter realmente assassinado meu inimigo se tornou tão agradável quando o som da chuva calma que se derramou na tarde anterior. No entanto, mesmo assim, eu tinha dois problemas sérios: o primeiro era ver-me livre daquele odor repugnante que causaria náuseas até ao pior dos vermes impugnes. O segundo problema era um cadáver no meu quintal. O corpo idiota do meu inimigo. Livrar-se do corpo não seria o problema maior, mas sim livrar-me da idéia do inimigo, ainda viva em mim. Talvez o homicídio tivesse sido em vão. A lixeira estava em pé e devidamente fechada. Não ouvi a vizinha chata que fala gritando, reclamar do cheiro do frigorífico como sempre fazia. Para meu alívio e, confesso, certa frustração, o corpo do inimigo não estava ali. Nem corvos sobrevoavam o local. O único transeunte era apenas um gato desengomado pela neblina. Dei meia volta não exatamente meia, acho que aproximadamente uns 116 graus à direita porque minha intenção agora era fazer meu saboroso café forte de todas as manhãs.
Enquanto a chama tímida e sem graça do fogão a gás aquecia a água – acho que vou comprar um fogão a lenha, a chama é mais bonita e viva – comecei a me perder em vã filosofia cartesiana sobre estar enganado a cerca dos meus sentidos. Teria o abuso de tabaco prejudicado meu olfato? Meu paladar estava ótimo porque a essa altura já degustava uma saborosa maça. Quando realizei a alquimia de misturar água quente ao café forte descobri que meu olfato estava em plenas condições. Mas também eu poderia estar tão viciado em cafeína que meu cérebro já se habituara a enviar informações do cheiro do café pelo simples fato de visualizar o café na xícara. Assim como o cachorro de Pavlov começava a salivar a ouvir o toque da campainha. Bom, ainda restava-me a visão. Nem cogitei a hipótese de loucura, sou mais consciente que Freud fumando charutos. Foi então que tomei a xícara da café em minhas mãos, ateei fogo no tabaco do cachimbo e me dirigi à mesa onde pretendia terminar de ler um livro iniciado na tarde anterior enquanto a chuva caia. Sentei-me e novamente o cheiro ruim voltou a me causar incômodo.
Terminei meu café, apaguei meu cachimbo e o odor miserável que não sei descrever semelhante a que poderia ser comparado, continuava a impregnar todo o ambiente. Agora a idéia de devaneio já começava a me perturbar. Meu inimigo? Já havia me esquecido dele. Estranho mesmo era que, exceto o cheiro, tudo parecia calmo e tranqüilo como nunca. Eu me sentia simplesmente bem comigo mesmo. Decidi banhar-me em água quente por longos minutos. Só não me demorei mais por causa dessa necessidade de consciência ecológica em economizar água. Fiz o contorno da barba com a mesma destreza de Michelangelo pintando a Capela Sistina. Cortei as unhas e vesti meu terno preferido - dos dois o outro já me serve mais -. Tinha intenção de ir a nenhum outro lugar. Apenas voltaria ao meu cachimbo, outra xícara de café forte e meu livro que já sangrava com algumas anotações do dia anterior em sua pele de celulose manipulada.
Retorno à mesa e percebi que havia esquecido os sapatos. Ri de mim mesmo ao ver meu reflexo no espelho, de terno e chinelos. Calcei os sapatos pretos, meias pretas também, se fossem outra cor seria melhor ter continuado de chinelos. Voltei a me sentar. Tomei o cachimbo em mãos e enquanto cumpria o ritual de remover as cinzas e organizar o tabaco, dei-me conta de que o odor havia desaparecido. Os fatos que no início haviam tomado sentido fúnebre já se estendiam ao ridículo nesse momento. Felizmente estava sozinho. Só me restava o sentimento de alívio de ter assassinado meu inimigo.
Olhei sobre a mesa e havia contas a pagar. Lembrei ainda de que tinha muitos problemas a resolver. Numa rápida anamnese resgatei inúmeras frustrações e sucessos do meu curto passado existencial. O surpreendente é que minha reação a essas lembranças e a certeza de que a frustração e o sucesso é contradição inerente a vida humana, foi uma reação diversa de até então. O que mudou foi a forma como comecei a reagir frente a essa fatalidade. Assim percebi que após anos ininterruptos de uma sangrenta batalha havia matado aos poucos, sem perceber, meu terrível inimigo. O cheiro podre insuportável havia desaparecido assim como haviam desaparecido o medo e a ausência de liberdade.

Sidinei Cruz Sobrinho
Passo Fundo 18 de agosto de 2009.