14.1.14

Rua Bacacay



Saíram para um passeio. Um desses recreios bons que se permitiam vez ou outra. Cruzaram a rua para o outro lado que continuou a ser o outro lado do lado de cá. Ele pensou por um momento nessas armadilhas da linguagem. Acendeu um cigarro. Segurou a mão da amada. Seguiu com um sorriso maldoso no rosto como que se tivesse enganado a lógica.
Na rua caminharam de mãos dadas, lado a lado. Na praça, beijaram-se, frente a frente. No café, degustaram-se, presença a presença. Não precisavam falar muito. Palavra demais é ausência. Conversaram longamente em silêncio.
De onde estava ela, admirava o Teatro Solís. De onde estava ele, via a livraria na qual há pouco havia comprado um disco de Gardel. Antes da livraria enxergava ainda a fachada antiga num prédio antigo na antiga Rua Bacacay. Antes mesmo da antiga fachada, no antigo prédio, eles também estavam e se avistavam na Rua Bacacay. Leu um letreiro logo acima da sua cabeça, que dizia: “Café Bacacay.” Ela continuou a leitura de um livro que comprara há pouco na lojinha do Teatro Solís.
Ele continuou a olhar a rua e antes, bem antes de ver a livraria, de lembrar-se de Gardel, antes mesmo da antiga fachada, no antigo prédio, antes, depois e dentro da Rua Bacacay, antes, muito antes, mas com tamanha antecedência que nem lembrava o que vinha depois, enxergava e admirava ela. Ela que era antes de tudo aquilo e que tinha um sorriso digno de ser sorrido na rua Bacacay.
Tomou seus negros olhos emprestados e viu a livraria sendo lida, Gardel ouvido, o teatro encenado, a fachada fechada se abrindo. A rua antiga de vida nova foi florindo. O letreiro soletrou um verso para cada letra. O café, degustado ao infinito. Bacacay, de silêncio, passou a ser grito.
Caminharam mais um pouco naquele dia. Ela lhe serviu doce de leite na boca, com lasciva e alegria. Com o mesmo sorriso que fez florir a rua Bacacay.
Quando voltaram pra casa, lembrou-se que havia lhe tomado emprestado os olhos negros. Devolveu-os cuidadosamente. Foi assim, que ao findar o dia, finalmente entendeu porque ela veio. Ele precisava ver além do olhar. Ser, além de estar. Ir mais vezes do que voltar. Estava cego e ela lhe acendeu um vaga-lume no caminho.
Talvez um dia eles voltem a passear pela ruela da velha Montevidéu. Irão sentar novamente no Café Bacaccay, na rua Bacacay de onde se pode ver a Livraria e o Teatro. Então ele abraçará suas mãos e lembrarão o dia que saíram para passear e se permitiram mais um recreio na rua Bacacay.

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